terça-feira, 6 de outubro de 2009

Outra Linha





Era cedo, o sol acabara de nascer, mas ela já estava de pé antes do mesmo iluminar o quarto. Apenas uma mensagem no papel era deixada. Uma simples palavra.


"Obrigada."


            Um ritual há muito praticado por Marcela. Nunca fica para o bom dia. Nunca fica para o café da manhã. Nunca mantinha contato. Saiu do quarto sorrateiramente, catando suas roupas pelo caminho e vestindo-as. Pegou sua bolsa e seu capacete no chão perto da porta. Deixou o apartamento sem nenhum ruído. Dividiu o elevador com uma senhora e seu marido. Ficou imaginando se já não era hora de ficar para o café, mas afastou esse pensamento rapidamente, não nasceu para ficar presa a alguém. Não era do tipo dessa “outra linha” de vida. Era livre.
            Enquanto atravessava o saguão do prédio, no apartamento que acabara de deixar, acordava Mell, uma publicitária recém formada, com uma carreira promissora. Ela olha o bilhete deixado pela Marcela e um leve sorriso se forma na sua face morena.


            _O que eu estava esperando? Fala para ninguém.


            Guarda o bilhete na escrivaninha, e vai até a janela. Lá em baixo vê Marcela saindo na moto. Se tivesse olhado alguns minutos antes teria visto que Marcela olhara para sua janela. Marcela nunca olha para trás, e repreendeu-se por fazê-lo.


            "O que essa garota tinha de diferente?" Era a pergunta que se fazia.


            As duas não se viram por cinco anos. Mell trabalhava agora numa agencia de publicidade importante. E Marcela tornou-se uma fotografa renomada. Nunca haviam trabalhado juntas, mas uma sempre ouvia rumores sobre a outra. Mell não saiu da cabeça de Marcela, e o contrário também aconteceu. Muitas mulheres passaram pela vida de ambas, mas nenhuma que conseguisse apagar as lembranças daquela fatídica noite. Até que um dia, seus caminhos cruzaram-se novamente.
            A tarde estava uma correria que só vendo na agência. Mell não havia parado um segundo desde que chegara. Tudo tinha que estar pronto para a reunião, tinha uma grande conta a fechar com uma das maiores redes de lojas do Brasil. As quatro em ponto, Mell entrava na sala de reuniões.


            _Então? Podemos começar? Pergunta Mell.
            _Sim, claro. Mas antes, as apresentações.


            O diretor da agência fez as apresentações do grupo, não medindo elogios a "sua melhor publicitária, Mellissa Albuquerque."
            As idéias para a campanha promocional da loja foram apresentadas por Mell, deixando os clientes animados. Ao final da apresentação, um dos clientes pediu a palavra.


            _Senhora Mellissa...
            _Senhorita. Interrompeu a mesma.
            _Perdão. Senhorita Mellissa_ sorriu o homem_ Sua idéia é maravilhosa...
            _Mas... Interrompeu mais uma vez.
            _Mas, nós temos uma exigência. E espero que não seja incomodo.
            _E qual seria?
            _Queremos a melhor fotógrafa nessa campanha.


            O coração de Mell disparou no mesmo instante. Ela sabia quem seria essa fotógrafa.
           
            _Senhor eu adoraria trabalhar com ela, mas o senhor sabe das dificuldades em conseguir contratá-la, devido à mesma ser muito requisitada.
            _Não se preocupe, Senhorita. Isso já foi acertado. Ela até deveria ter participado da reunião, mas teve um contratempo.


            Ao terminar de falar o interfone toca.


            "Senhor, a senhorita Marcela Guimarães está aqui fora, disse que veio para a reunião."
            _Mande-a entrar, Glória.


            As portas abrem-se. Mell e Marcela se olham imediatamente. Um calafrio sobe as costas de Marcela, e Mell sente um arrepio por todo o corpo.
           
            _Marcela.
            _Mell.


            Isto é dito com um pequeno aceno de cabeças.


            _Então, já se conhecem? Ótimo!
            _Desculpem o atraso, surgiu um imprevisto. Desculpou-se Marcela.
            _Bom, minha querida. Temo que você perdeu a melhor apresentação que vi na vida. Falou um dos clientes.
            _Que pena. Falou Marcela, que em momento nenhum tirou os olhos da publicitária a sua frente.


            O diretor da agência levantou e dirigiu-se a Marcela.





            _Acho que a Mell ficará muito feliz em passar para a senhorita os planos para essa campanha. Não é verdade, Mell? Olhou-a com divertimento, recebeu um olhar atônito de volta.
            _Claro, claro. Que tal um jantar?
            _Ótimo, estou faminta. Declarou a outra.
            _Minha casa, então? Falou Mell.
            _Não. Minha casa. Falou Marcela.


            Apenas o diretor da agência viu o resultado de tudo isso. E sorriu para Mell ao sair da sala, deixando as duas mulheres sozinhas.


            _Vamos? Perguntou Marcela.
            _Vamos. Mas não vamos naquela sua moto.
            _Você lembra? Riu Marcela.
            _Claro que lembro! Você quase nos mata, dirigindo feito louca pela cidade. Vou no meu carro. Apenas me diga onde mora.


            Depois de dadas as orientações, as duas seguiram para o prédio da Marcela. O trânsito estava um caos, como sempre. E a Mell demorou uma hora a mais para chegar, dando tempo para Marcela arrumar o apartamento e preparar um jantar simples com uma salada de entrada e uma massa de prato principal. O molho estava no fogo, quando a campainha toca. Marcela corre para atender. Olha-se no espelho antes de abrir a porta. Marcela usa uma camisa masculina branca com um jeans justo surrado, e de forma alguma a camisa lhe dava um ar masculinizado, muito pelo contrário. Ao abrir a porta dá de cara com a Mell usando um vestido preto curto.


            _Onde você arranjou isso?
            _Uma mulher prevenida vale por duas. Declarou Mell, sorrindo, tinha conseguido a reação desejada.
            _Entra. Disse Marcela, dando passagem.


            Mell entrou e observou o local. Era um duplex. Dava para ver o piso superior, lá tinha um estúdio montado no lado direito e no lado esquerdo via-se uma cama. Embaixo a cozinha, uma sala e uma porta, que Mell supôs ser um quarto escuro para revelações, já que uma luz vermelha apagada existia ao lado da porta.
      
_Você não usa câmeras digitais?
_Algumas vezes, a maioria para campanhas. Mas quando fotografo para mim mesma prefiro o modo antigo.


Mell viu uma mesa redonda na cozinha, estava arrumada e com duas velas ainda apagadas.


_Está com fome? Pergunta Marcela.
_Morrendo.


Marcela lembra o molho e corre para desligar o fogo. Mell a segue. As duas conversam sobre banalidades, enquanto Marcela prepara a massa.
O jantar é servido e as velas acesas, mas Mell fala apenas sobre o trabalho que irão fazer juntas. O que faz Marcela ficar desapontada, no entanto a conversa flui normalmente. O assunto muda, e elas voltam a conversar sobre coisas triviais.


_Quem quer sobremesa? Pergunta Marcela.
_Eu! Eu! Fala Mell levantando a mão, fazendo as duas rirem.


Marcela serve pudim. As duas olham-se nos olhos e o silêncio impera no recinto. É Marcela quem o quebra.


_Eu pensei em ficar.
_Como?!
_Naquela noite, eu pensei em ficar.
_Eu entendi, só fiquei...
_Surpresa?
_Isso.


Mais silêncio.
Mell levanta-se de repente.


_Preciso ir.


Sai em direção da porta, mas é impedida por Marcela, que segura sua mão. Seus olhos encontram-se novamente. Mell toma a iniciativa. O beijo acontece e é feroz. Mostrando a raiva, o desejo e a saudade sentida por ela. Marcela abraça Mell com força, não querendo soltá-la, e o beijo se acalma, torna-se lento, suas línguas se procuram. A respiração fica rápida, suas mãos percorrem o corpo uma da outra. Logo a camisa de Marcela vai para o chão junto com o vestido preto de Mell. Marcela beija-lhe o pescoço fazendo Mell soltar um pequeno gemido. As duas acabam no sofá. Marcela interrompe, sob os protestos de Mell.


_Cama! Sussurra Marcela, sem fôlego.


As duas sobem as escadas retirando as últimas peças de roupa. Mell joga Marcela na cama e para um momento para admirar a beleza da fotógrafa, Marcela puxa Mell e a beija. Mell interrompe o beijo e passa a explorar o corpo de Marcela com os lábios, deixando-a maluca. Seus corpos encaixam perfeitamente. As amantes saciadas adormecem nos braços uma da outra.
Marcela acorda de madrugada e observa sua pele branca contrastando com a pela morena da publicitária. Observa-a dormir, sua respiração lenta, ela acompanha o ritmo respiratório da amante e adormece novamente. Acorda com o sol entrando pela janela aquecendo seu corpo. Ainda de olhos fechados procura por Mell e encontra uma cama vazia. Abre os olhos assustada e não encontra sinal da outra mulher. Dói-lhe o peito e lágrimas percorrem o seu rosto. Um chiado de manteiga a faz pular da cama e descer as escadas correndo, tropeçando nas roupas jogadas na noite anterior. Ela para no meio da sala com os olhos cheios de lágrimas e fica olhando a outra mulher preparar o café da manhã. Mell vira e fica de frente a Marcela. Ela não entende o porquê das lágrimas na face dela.


_O que aconteceu? Pergunta Mell, assustada.


Marcela abraça Mell com força.


_Você me assustou.
_Eu? O que foi que eu fiz?
_Achei que você tinha ido embora. Fala Marcela entre lágrimas.


Mell relaxa o corpo que até então estava tenso, abraça Marcela com carinho e sussurra no ouvido.


_Eu não vou a lugar nenhum.


Seis anos se passaram desde então. Marcela mudou o corte de cabelo, o estilo de roupa, o tipo de programa de fim de semana, o endereço. O apartamento que comprara fica próximo à praia, é pequeno com dois quartos apenas, mas é aconchegante. Ainda na cama Marcela ouve o som do chuveiro sendo ligado, logo em seguida a cabeça de Mell surge na porta do quarto.


_Amor, você não vem?
_Só um segundo. Marcela abre o guarda roupa, pega uma toalha e sorri. Metade seu, metade dela.
_Faço parte da “outra linha” afinal de contas.

0 comentários: